quarta-feira, outubro 31, 2007

Tropa de Elite: A criminalização da Pobreza.

Por Ivan Pinheiro

"Homem de preto.
Qual é sua missão?
É invadir favela
E deixar corpo no chão"
(refrão do BOPE)

Não dá cair no papo furado de que "Tropa de Elite" é "arte pura" ou "obra aberta". Um filme sobre questões sociais não podia ser neutro. Trata-se de uma obra de arte objetivamente ideológica, de caráter fascista, que serve à criminalização e ao extermínio da pobreza. É possível até que os diretores subjetivamente não quisessem este resultado, mas apenas ganhar dinheiro, prestígio e, quem sabe, um Oscar. Vão jurar o resto da vida que não são de direita. Aliás, você conhece alguém no Brasil, ainda mais na área cultural, que se diga de direita?
Como acredito mais em conspirações do que no acaso, não descarto a hipótese de o filme ter sido encomendado por setores conservadores. Estou curioso para saber quais foram os mecenas desta caríssima produção, que certamente foi financiada por incentivos fiscais.
O filme tem objetivos diferentes, para públicos diferentes. Para os proletários das comunidades carentes, o objetivo é botar mais medo ainda na "caveira" (o BOPE, os "homens de preto"). O vazamento escancarado das cópias piratas talvez seja, além de uma estratégia de marketing, parte de uma campanha ideológica. A pirataria é a única maneira de o filme ser visto pelos que não podem pagar os caros ingressos dos cinemas. Aliás, que cinemas? Não existe mais um cinema nos subúrbios, a não ser em shopping, que não é lugar de pobre freqüentar, até porque se sente excluído e discriminado.
No filme, os "caveiras" são invencíveis e imortais. O único que morre é porque "deu mole". Cometeu o erro de ir ao morro à paisana, para levar óculos para um menino pobre, em nome de um colega de tropa que estava identificado na área como policial. Resumo: foi fazer uma boa ação e acabou assassinado pelos bandidos.
Para as classes médias e altas, o objetivo do filme é conquistar mais simpatia para o BOPE, na luta dos "de cima", que moram embaixo, contra os "de baixo", que moram encima.
Os "homens de preto" são glamourizados, como abnegados e incorruptíveis. Apesar de bem intencionados e preocupados socialmente, são obrigados a torturar e assassinar a sangue frio, em "nosso nome". Para servir à "nossa sociedade", sacrificam a família, a saúde e os estudos. Nós lhes devemos tudo isso! Portanto, precisam ser impunes. Você já viu algum "caveira" ser processado e julgado por tortura ou assassinato? "Caveira" não tem nome, a não ser no filme. A "Caveira" é uma instituição, impessoal, quase secreta.
Há várias cenas para justificar a tortura como "um mal necessário". Em ambas, o resultado é positivo para os torturadores, ou seja, os torturados não resistem e "cagüetam" os procurados, que são pegos e mortos, com requintes de crueldade. Fica outra mensagem: sem aquelas torturas, o resultado era impossível.
Tudo é feito para nos sentirmos numa verdadeira guerra, do bem contra o mal. É impossível não nos remetermos ao Iraque ou à Palestina: na guerra, quase tudo é permitido. À certa altura, afirma o narrador, orgulhoso : "nem no exército de Israel há soldados iguais aos do BOPE".
Para quem mora no Rio, é ridículo levar a sério as cenas em que os "rangers" sobem os morros, saindo do nada, se esgueirando pelas encostas e ruelas, sem que sejam percebidos pelos olheiros e fogueteiros das gangues do varejo de drogas! Esta manipulação cumpre o papel de torná-los ainda mais invencíveis e, ao mesmo tempo, de esconder o estigmatizado "Caveirão", dentro do qual, na vida real, eles sobem o morro, blindados. O "Caveirão", a maior marca do BOPE, não aparece no filme: os heróis não podem parecer covardes!
O filme procura desqualificar a polêmica ideológica com a esquerda, que responsabiliza as injustiças sociais como causa principal da violência e marginalidade. Para ridicularizar a defesa dos direitos humanos e escamotear a denúncia do capitalismo, os antagonistas da truculência policial são estudantes da PUC, "despojados de boutique", que se dão a alguns luxos, por não terem ainda chegado à maioridade burguesa.
Os protestos contra a violência retratados no filme são performances no estilo "viva rico", em que a burguesia e a pequena-burguesia vão para a orla pedir paz, como se fosse possível acabar com a violência com velas e roupas brancas, ou seja, como se tratasse de um problema moral ou cultural e não social.
A burguesia passa incólume pelo filme, a não ser pela caricatura de seus filhos que, na Faculdade, fumam um baseado e discutem Foucault. Um personagem chamado "Baiano" (sutil preconceito) é a personificação do tráfico de drogas e de armas, como se não passasse de um desses meninos pobres, apenas mais espertos que os outros, que se fazem "Chefe do Morro" e que não chegam aos trinta anos de idade, simples varejistas de drogas e armas, produtos dos mais rentáveis do capitalismo contemporâneo. Nenhuma menção a como as drogas e armas chegam às comunidades, distribuídas pelos grandes traficantes capitalistas, sempre impunes, longe das balas achadas e perdidas. E ainda responsabilizam os consumidores pela existência do tráfico de drogas, como se o sistema não tivesse nada a ver com isso!
O Estado burguês também passa incólume pelo filme. Nenhuma alusão à ausência do Estado nas comunidades carentes, principal causa do domínio do banditismo. Nenhuma denúncia de que lá falta tudo que sobra nos bairros ricos. No filme, corrupção é um soldado da PM tomar um chope de graça, para dar segurança a um bar. Aliás, o filme arrasa impiedosamente os policiais "não caveiras", generalizando- os como corruptos e covardes, principalmente os que ficam multando nossos carros e tolhendo nossas pequenas transgressões, ao invés de subirem o morro para matar bandido.
A grande sacada do filme é que o personagem ideológico principal não é o artista principal. Este, branco, é o que mais mata. Ironicamente, chama-se Nascimento. É um tipo patológico, messiânico, sanguinário, que manda um colega matar enquanto fala ao celular com a mulher sobre o nascimento do filho.
Mas para fazer a cabeça de todos os públicos, tanto os "de cima" como os "de baixo", o grande e verdadeiro herói da trama surge no final: Thiago, um jovem negro, pacato, criado numa comunidade pobre, que foi trabalhar na PM para custear seus estudos de Direito, louco para largar aquela vida e ser advogado. Como PM, foi um peixe fora d'água: incorruptível, respeitava as leis e os cidadãos. Generoso, foi ele quem comprou os óculos para dar para o menino míope. S
Sua entrada no BOPE não foi por vocação, mas por acaso.
Para ficar claro que não há solução fora da repressão e do extermínio e que não adianta criticar nem fazer passeata, pois "guerra é guerra", nosso novo herói se transforma no mais cruel dos "caveiras" da tropa da elite, a ponto de dar o tiro de misericórdia no varejista "Baiano", depois que este foi torturado, dominado e imobilizado. Para não parecer uma guerra de brancos ricos contra negros pobres, mas do bem contra o mal, o nosso herói é um "caveira" negro, que mata um bandido "baiano", de sua própria classe, num ritual macabro para sinalizar uma possibilidade de "mobilidade social", para usar uma expressão cretina dos entusiastas das "políticas compensatórias" .
A fascistização é um fenômeno que vem sendo impulsionado pelo imperialismo em escala mundial. A pretexto da luta contra o terrorismo, criminalizam- se governos, líderes, povos, países, religiões, raças, culturas, ideologias, camadas sociais.
Em qualquer país em que "Tropa de Elite" passar, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, o filme estará contribuindo para que a sociedade se torne mais fascista e mais intolerante com os negros, os imigrantes de países periféricos e delinqüentes de baixa renda.
No Brasil, a mídia burguesa há muito tempo trabalha a idéia de que estamos numa verdadeira guerra, fazendo sutilmente a apologia da repressão. Sentimos isso de perto. Quantas vezes já vimos pessoas nas ruas querendo linchar um ladrão amador, pego roubando alguma coisa de alguém? Quantas vezes ouvimos, até de trabalhadores, que "bandido tem que morrer"?
Se não reagirmos, daqui a pouco a classe média vai para as ruas pedir mais BOPE e menos direitos humanos e, de novo, fazer o jogo da burguesia, que quer exterminar os pobres, que só criam problemas e ainda por cima não contam na sociedade de consumo. Daqui a pouco, as milícias particulares vão se espalhar pelo país, inspiradas nos heróicos "homens de preto", num perigoso processo de privatização da segurança pública e da justiça. Não nos esqueçamos do modelo da "matriz": hoje, os mais sanguinários soldados americanos no Iraque são mercenários recrutados por empresas particulares de segurança, não sujeitos a regulamentos e códigos militares.
Parafraseando Brecht, depois vai sobrar para nós, que teimamos em lutar contra o fascismo e a barbárie, sonhando com um mundo justo e fraterno.
A trilha sonora do filme já avisou:
"Tropa de Elite,
Osso duro de roer,
Pega um, pega geral.
Também vai pegar você!"

terça-feira, outubro 30, 2007

Comer Brigadeiro, pode. Coronel , não pode

Dono de lanchonete é preso por batizar sanduíches como patentes militares.

Para o dono de uma lanchonete de Penedo, a 170 km de Maceió (AL) tratava-se de uma estratégia de marketing. Para o comandante da Polícia Militar na cidade, era uma ofensa à corporação. E assim, por batizar os sanduíches da casa com patentes militares, Alberto Lira, 38 de idade, dono da lanchonete Mister Burg, acabou detido por ordem do comandante da PM local.

Afinal, entendeu o militar, não ficaria bem alguém chegar na lanchonete e pedir: "quero um coronel mal passado". Ou sair de lá dizendo: "acabei de comer um sargento". Na delegacia foi lavrado boletim de ocorrência e, face ao tumulto havido, a casa comercial fechou durante algumas horas. Como o delegado de plantão entendeu que não havia motivo para prisão, Lira foi liberado horas mais tarde. Os cardápios da lanchonete foram recolhidos para avaliação e a casa reaberta em seguida. Aproveitando-se da inesperada repercussão, a lanchonete quer manter o cardápio que desagrada a PM.

A casa oferece lanches como o "coronel" (que é o filé com presunto) e o "comandante" (um prato com calabresa frita) etc. A brincadeira foi demais para o parco humor da Polícia Militar que diz que os nomes dos pratos provocavam chacotas e insinuações contra os policiais entre os moradores da cidade de 60 mil habitantes. Lira, o dono da lanchonete, diz que não teve nem tem nenhuma intenção de brincar ou ofender a corporação. O cardápio - garante o dono da lanchonete - pretendia ser uma homenagem à hierarquia militar. O prato mais caro era o "comandante".

O comerciante contratou ontem (15) o advogado Francisco Guerra, para entrar com uma denúncia por abuso de autoridade contra o comandante local da PM e uma ação reparatória por dano moral contra o Estado de Alagoas. Nela vai salientar que não existe nenhum texto legal que impeça um restaurante de incluir, no seu cardápio, "lula à milanesa", "filé a cavalo" ou "coronel mal passado" etc. O advogado já pediu habeas corpus preventivo para evitar outra detenção de seu cliente. A peça sustenta que "se o argumento do comandante fosse válido, nenhuma festa de criança poderia ter brigadeiro".

Como se sabe, brigadeiro - além de ser a mais alta patente da Aeronáutica - é também o nome do docinho obrigatório em aniversário de crianças. "Em Penedo, comer brigadeiro pode, mas comer coronel, está proibido" - ironizam os advogados da cidade.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Manual prático de levitação

Por José Eduardo Agualusa
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Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço, vamos dançar?, e lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e o volume da música. Terminado o número, um tanto humilhado porque, confesso, tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode, o que foi, meu velho, estás chateado?, e eu, que não, esforçando-me por sorrir, esforçando-me por rir às gargalhadas, como o resto da chusma, chateado? por que havia de estar chateado?, o dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou, e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim. Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sombriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o de repente tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum — visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão.
— Sou Fulano — disse-lhe. — Vendo caixões.
A mão do homem (entre a minha) era lassa e pálida. Os olhos tinham um brilho escuro, vago, como um lago, à noite, iluminado pela luz do luar. A maioria das pessoas não consegue disfarçar o choque, ou o riso, depende da circunstância, quando escutam a palavra caixões. Alguns hesitam: paixões? Não, corrijo, caixões. O sujeito, porém, permaneceu imperturbável.
— Nenhum nome é verdadeiro —, respondeu-me, com forte sotaque pernambucano. — Mas pode me chamar Emanuel Subtil.
— E o que faz o senhor?
— Sou professor...
— Ah Sim? E de quê?
Emanuel Subtil sacudiu a cabeleira num movimento distraído:
— Dou aulas de levitação.
— Levitação?!
— Levitação, sabe?, fenômeno psíquico, anímico, mediúnico, em que uma pessoa ou uma coisa é erguida do solo sem um motivo visível, apenas devido ao esforço mental. A mente movimenta fluidos ectoplasmáticos capazes de vencer a força da gravidade. Eu ensino técnicas de levitação. Sem arames nem outros truques soezes.
— Interessante! Muito interessante! —, respondi, tentando ganhar tempo para pensar. — E tem muitos alunos?
O homem sorriu-me gravemente. É certo que não, disse, nos dias de hoje são poucas as pessoas interessadas em levitar. Tristes tempos estes. O triunfo do materialismo tem vindo a corromper tudo. Escasseiam as vocações para as obras do espírito. As vocações e a força mental — sugeri timidamente. Sim, confirmou Emanuel Subtil, sacudindo outra vez a magnífica cabeleira branca, e a força mental. As pessoas preferem manter os pés bem assentes na terra. E levitava, ele?, quis eu saber. Isto é, praticava com freqüência essa arte esquecida? Emanuel Subtil sorriu absorto:
— Não há dia em que não pratique. Levitar, meu caro senhor, é o mais completo dos exercícios. Cinco minutos em suspensão, logo pela manhã, ao romper da alva, estimula todos os órgãos vitais e regenera a alma.
Inclusive acontecia-lhe às vezes levitar por descuido. Contou-me que São José de Copertino, que viveu entre 1603 e 1663, sofria ataques de imponderabilidade sempre que algo o emocionava. Chamava a isso, com terror, "as minhas vertigens". Um domingo, durante a missa, elevou-se no vazio e durante largos minutos pairou numa aflição sobre o altar, em meio à chama aguda das velas, e ao alarido das beatas, ficando gravemente queimado. A igreja afastou-o, durante 35 anos, de todos os rituais públicos, em razão destas práticas extravagantes, mas nem isso impediu que a sua fama se propagasse. Uma tarde, passeando o santo homem pelos jardins do mosteiro, em companhia de um monge beneditino, foi subitamente arrastado até aos ramos mais altos de uma oliveira por um golpe de vento. Infelizmente sucedia com ele o mesmo que com os gatos, ou os balões, toda a sua propensão era para subir, não para descer, de forma que os monges tiveram de o resgatar de lá com o auxílio de uma escada. Murmurei qualquer coisa sobre a vocação mística das oliveiras, a tendência que demonstram, desde há milênios, para acolherem santos e demiurgos. Emanuel Subtil, porém, ignorou a minha observação. O caso de São José de Copertino, explicou, servia-lhe somente para ilustrar os perigos que incorre um leigo, ainda que excepcionalmente talentoso, ao praticar a arte da levitação sem o acompanhamento de um mestre:
— Você oferecia um Ferrari a uma criança?
Certamente que não! Concordei logo. É claro, por amor de Deus!, não o punha nem nas minhas mãos.
— Levitar não é para qualquer um, — prosseguiu Emanuel Subtil carregando nas palavras. — Levitar exige fé, perseverança e ainda algo mais: responsabilidade. Quer tentar?
E logo ali expôs as suas condições. Trezentos reais por mês. Quatro vezes por semana. Uma hora cada sessão. Naturalmente, acrescentou, seria impossível observar resultados antes de três a quatro meses.
— E se não obtiver resultados?
Emanuel Subtil sossegou-me. Em três meses, convenientemente orientado, até um elefante consegue levitar. Mas ainda que eu me revelasse tão mau levitador quanto bailarino (só então percebi que passara a noite a observar-me) ele próprio me daria um empurrão. Citou-me o caso de um famoso médium inglês, Daniel Douglas Home, que nos anos trinta desafiava a tradicional fleuma britânica fazendo flutuar pianos e outros objectos pesados. Conta-se que uma noite levou um boi para o salão de um rico industrial, e o ergueu no ar. Ia o boi ao nível dos lustres, bem alto e iluminado, quando, por distracção ou um repentino desfalecimento de fé, lhe falharam as forças (ao médium), romperam-se os fluidos ectoplasmáticos, e o animal precipitou-se, com brutal fragor, sobre duas das acólitas.
— Morreram?
— O que lhe parece? — Suspirou. — A história da aeronáutica está cheia de tragédias, pequenas e grandes, mas nem por isso deixamos de andar de avião.
Declinei o convite. A festa chegara ao fim. Um velho negro dançava sozinho, de lágrimas nos olhos, alheio à música, vamos chamar-lhe música, uma mistura de alarme de carros, já rouco e exausto, e metais em convulsão. Duas raparigas muito loiras, muito lânguidas, dormiam abraçadas num sofá. Eu não conhecia ninguém. Ninguém me conhecia.
—Talvez você saiba de alguém que dê aulas de invisibilidade. Nisso estou interessado.
Emanuel Subtil olhou-me com desdém. Não respondeu. Já no hall, enquanto escolhia um guarda-chuva discreto, conforme ao meu ofício, entre um denso molhe deles, ainda vi o brasileiro abrir caminho através do fumo espesso e desabar no sofá, junto às duas raparigas loiras. Vi-o fechar os olhos. Cruzar os braços sobre o peito magro. Pareceu-me que sorria. Tenho conhecido gente um pouco estranha nestas festas. Existe de tudo. As ocupações mais bizarras. Eu sei, é claro, que isso depende sempre da perspectiva. Eu, por exemplo, vendo caixões. O meu pai vendia caixões. O meu avô vendia caixões. Cresci nisto. Acho até prosaico. Preferia, reconheço, dar aulas de levitação. Paciência. Consola-me saber que a morte é melhor negócio. Como o meu avô dizia - só uma coisa me aflige: a imortalidade.
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sexta-feira, outubro 19, 2007

Um dia quiseram ver quem era o melhor: Macgyver, Jack Bauer, ou Capitão Nascimento.

Chegaram pro Macgyver e falaram: A gente soltou um coelho nessa floresta. Encontre mais rápido que os outros e você será considerado omelhor!

Macgyver pegou uma moeda de 5 centavos no chão, um graveto e uma pedra e entrou na floresta. Demorou 2 dias pra construir um detector de coelhos em floresta e voltou no 3o dia com o coelho.

Dai chegaram pro Jack Bauer e falaram a mesma coisa. Ele entroucorrendo na floresta e 24 horas depois apareceu com o coelho. Pediu desculpas porque teve que desarmar 5 bombas nucleares, recuperar 15 armas químicas, escapar de um navio cargueiro que ia pra China e matar 100 terroristas pra chegar até o coelho.

Dai pediram para o Cap. Nascimento ir buscar o coelho. Se ele demorasse menos de 24 horas ele seria o melhor. No que ele respondeu:

- Tá de sacanagem comigo 05? Cê tá de sacanagem comigo??? Você acha que eu tenho um dia inteiro pra perder com essa porra de brincadeira 05 ? Tu é mo-le-que! MO-LE-QUE 05!!! Virou-se calmamente para a floresta e gritou:

- Pede pra sair!!! Pede pra sair cambada!!!

Em menos de 5 segundos já tinham saído da floresta 300 coelhos, 20 jaguatiricas, 50 jacarés, 1000 paca-tatu-cotia-nao, o Shrek e o monstro fumaça do Lost.

Daí ele gritou:

- 02, tem gente com medinho de sair da floresta, 02!

- 07, traz a 12!

...nisso o Bin Laden saiu da floresta correndo!!!

segunda-feira, outubro 15, 2007

A tragédia dos professores enlouquecidos

O choque de vítimas é visível quando uma professora agride um garoto que passou a vida sendo agredido

Por Gilberto Dimenstein - Folha de S. Paulo

Depois de pegar um de seus estudantes mais indisciplinados e agressivos pela gola e rasgar sua camisa, Sirley Fernandes da Silva, professora de uma escola estadual na periferia de São Paulo, pediu licença médica e resolveu procurar um psiquiatra -já não sabia lidar com tanto desrespeito em sala de aula. “O aluno era terrível, mas depois fiquei com pena dele. Quando chamamos os pais e percebemos como são ausentes da vida dos filhos, vemos que o garoto também é uma vítima. O aluno fica em casa abandonado e, muitas vezes, vai para a escola só para comer.”

Depois de um ano de terapia, Sirley não abandonou o magistério, apenas trocou de série. Passou a dar aulas no ensino médio, onde, segundo ela, havia uma “vantagem”: “Os alunos do ensino médio podem ser mais agressivos verbalmente, mas os do fundamental partem para a agressão física”.

Difícil saber o que é mais dramático: a professora descontrolada pedindo socorro ao psiquiatra ou a “vantagem” que ela encontrou ao dar aulas para estudantes mais velhos e apenas ser xingada.
O caso de Sirley faz parte de uma tragédia conhecida quase exclusivamente por especialistas: a epidemia de distúrbios mentais dos professores brasileiros, provocados, entre outros motivos, pela violência e pelas condições de trabalho ruins. Diante desse massacre psicológico, um minuto de silêncio seria uma forma apropriada de comemorar, amanhã, o Dia do Professor.

O cansaço psicológico de Sirley ajuda a explicar uma informação divulgada pela Folha na sexta-feira sobre o desempenho escolar em uma das regiões mais ricas do país. Segundo testes aplicados pelo governo estadual, 37% dos estudantes que concluem o ensino fundamental são totalmente analfabetos. Nada menos do que 72% das escolas nessa região estão em “estado de atenção”, devido ao baixo aprendizado. Entende-se como as crianças se tornam adultos incapazes de compreender um texto simples.

O problema dos salários não é o maior dos males -o maior de todos são as condições de trabalho. Uma pesquisa realizada neste ano pela Apeoesp (sindicato dos professores estaduais) levantou, pela ordem, os seguintes problemas: superlotação em sala (73%), falta de material didático (67%), dificuldade de aprendizagem dos alunos (65%), jornada excessiva (64%), violência nas escolas (62%).

De acordo com essa pesquisa, 80% dos professores apresentam o cansaço como um sintoma freqüente, 61% sofrem de nervosismo, 54% padecem com dores de cabeça e 57% têm problemas com a voz. Cerca de 46% deles tiveram diagnóstico confirmado de estresse.

Devemos examinar esse dados com certa atenção porque, primeiro, vêm de um sindicato, que tende a exagerar seus dramas para exigir benefícios à categoria, e, segundo, porque existe uma indústria da licença médica, vista quase como um direito adquirido para compensar tantas adversidades.

Mas quem freqüenta escolas públicas, especialmente na periferia, sabe que, de fato, o professor é massacrado diariamente -assim como seus alunos são massacrados, vítimas de uma série de mazelas que acabam afetando seu aprendizado. O professor é obrigado a lidar com o aluno que não ouve direito porque não sabe limpar direito o ouvido, que sofre de dislexia nem ao menos diagnosticada ou que é vítima da violência ou do descaso doméstico.

O massacre é crônico, de tal forma que, dificilmente, se conseguiria atrair talentos para as escolas públicas -especialmente, para quem mais precisaria desses talentos, que são os mais pobres. Não atraindo, cria-se um círculo vicioso da miséria educacional. O que se nota, além de um absenteísmo enorme, com ou sem justificativa, é uma rotatividade incessante de professores e de diretores.

Pense numa das empresas mais sólidas do Brasil e imagine que os funcionários se comportem como se estivessem numa escola pública -estressados, desmotivados, nem punidos por seus erros, nem premiados por seus acertos. E tudo isso apoiado num forte corporativismo. E, em muitos casos, como mostrou a Folha na semana passada, com cargos de direção escolhidos por políticos. Em quanto tempo essa empresa quebraria?

Oferecer melhores salários certamente ajudaria, a longo prazo, a atrair talentos. Mas, a curto prazo, nesse massacre a que estão submetidos os professores, duvido que funcione. Faz mais sentido oferecer prêmios a escolas que demonstrem mais esforço e ir, aos poucos, criando exemplos, enquanto se melhoram as condições de trabalho, os currículos e os cursos de formação dos docentes.

Nessa briga, não há mocinhos nem bandidos. É, na verdade, um choque de vítimas, visível quando uma professora, desesperada, agride um garoto que passou a vida sendo agredido.

O que dá para dizer, com certeza, é que não se constrói uma nação civilizada com professores enlouquecidos.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo (15/10/2007), editoria Cotidiano.

http://tribunapopular.wordpress.com/2007/10/15/a-tragedia-dos-professores-enlouquecidos/

domingo, outubro 14, 2007

O ensino vai à Bolsa

Grupos privados abrem o capital no mercado financeiro e iniciam novo ciclo no setor, baseado em fusões, aquisições e na disputa por alunos de menor renda.
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Por João Marcello Erthal e Lívia Perozim. Carta Capital. Edição 466.

No saguão da Bolsa de Valores de São Paulo, o professor Antonio Carbonari estica o terno, posa para um fotógrafo e faz planos de estampar, ao lado de marcas consagradas no pregão, o nome da Anhanguera Educacional. “Estamos no verde, significa que subimos. Fantástico”, diz o empresário, recém-chegado ao mercado financeiro, embasbacado com o sobe-e-desce das ações.
Carbonari está encantado e tem suas razões. Seis meses após a abertura de capital, a Anhanguera havia captado 512 milhões de reais, resultado excepcional para uma empresa tão nova na Bolsa. Outros dois grupos educacionais seguiram o mesmo caminho.

O Kroton, da rede Pitágoras, que tem entre os sócios o ministro Walfrido dos Mares Guia, conseguiu 479 milhões de reais. A Estácio Participações, controladora da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, embolsou 447 milhões. O COC, do interior paulista, está em negociação com os investidores.

Outras tantas escolas estão ávidas por participar da bonança financeira que o ensino superior atravessa, nova aposta dos investidores brasileiros e estrangeiros. “Vejo o mercado de educação como um supermercado. Estou vendendo um produto. Só que, em vez de vender tomate, meu produto é um assento para o aluno estudar”, compara o economista Marcelo Cordeiro, da Fidúcia Asset Management, especializado em buscar investimentos para o setor.

O efeito dessa onda de dinheiro novo nas faculdades, por meio da Bolsa de Valores, deve ser a concentração de mercado. Anhanguera, Kroton e Estácio já figuram entre os maiores grupos brasileiros. Só a Estácio tem 185 mil alunos. Quanto mais aplicadores atrair, mais as faculdades e universidades terão de apresentar resultados financeiros satisfatórios.

Em geral, a forma mais fácil de crescer é adquirir ou se fundir a um concorrente. Resultado: a abertura de capital vai levar necessariamente à consolidação dos gigantes do ensino. “A concentração é um caminho sem volta. Já aconteceu nos Estados Unidos e vai acontecer aqui. Quem ficar de fora está morto”, prevê Cordeiro.

Os limites da mercantilização estão, para o secretário de ensino superior do Ministério da Educação (MEC), Ronaldo Mota, na preservação da qualidade do ensino. “O setor privado ocupou o lugar que o público não conseguiu ou não quis ocupar”, admite, ressaltando que, apesar de este novo mercado se mostrar lucrativo, cabe ao governo fazer com que a educação não seja confundida com mercadoria.

“A Constituição diz que o ensino é livre à iniciativa privada, desde que cumpra as regras gerais da Educação Nacional. Temos de avaliar e regulamentar para que isso não se torne uma simples disputa de mercado, o que pode fazer com que a instituição de qualidade sofrível, com valores de mensalidade menores, sacrifique as instituições de mais qualidade. A missão agora não é sufocar o crescimento do sistema privado, mas garantir que ele seja feito com controle de qualidade”, afirma.

Manter o controle sobre o setor privado representa, por causa do tamanho que as instituições particulares alcançaram no Brasil, um desafio de grandes proporções. Há, hoje, no País 2.141 escolas superiores privadas, que reúnem 4,4 milhões de alunos. As públicas somam 257 e têm 1,4 milhão de estudantes.

Para o cientista político Edson Nunes, presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) e Pró-Reitor de Desenvolvimento e Planejamento da Universidade Candido Mendes, o ensino superior expandiu-se exclusivamente ao sabor do mercado.

“O País deliberou, ou vem deliberando, se preferirmos, expandir os cursos superiores por meio do setor privado. Mas não tomou um conjunto de outras medidas necessárias a, de um lado, tirar vantagens dessa deliberação, e, de outro, adequadamente administrar suas premissas e conseqüências”, analisa, no estudo Desafio Estratégico da Política Pública: o Ensino Superior Brasileiro, concluído em julho deste ano.
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